quinta-feira, 19 de outubro de 2023

o coração

às vezes, o coração dói tanto, que não se sabe o que fazer. nem dizer. nem pensar. nem como remediar. é uma dor que se propaga do interior. invade tudo. anila tudo. silencia tudo. vibra duma tal maneira que fica ressentida em cada partícula do corpo. em cada músculo. em cada movimento a mais. e todos parecem a mais. cega os outros sentidos. de repente, perguntamo-nos como é que conseguimos respirar. se estamos a respirar mesmo. se o ar continua a preencher os pulmões ou se ficamos completamente suspensos. entre mundos. entre realidades. entre lágrimas. num lugar por pessoas que não respiram. não vivem. só existem. ou pelo menos tentam existir. a não saber exatamente o que fazer. como voltar. como deixar de flutuar. quanto tempo é que se pode lá ficar? abatidos pelo peso do firmamento. dos pensamentos. do próprio corpo. da dor. arrastados por ela do quotidiano. da paz da alma. da sensação de seguridade encontrada nos gestos pequenos. cultivada com os gestos pequenos. o nó na garganta a apertar cada vez mais. a paralisar tudo. a parecer anunciar uma explosão iminente. a pintar a cinzento o que está em volta. a pedir atenção. a controlar tudo.

como é que se foge de lá?

segunda-feira, 17 de julho de 2023

relações fazem sufocar?

duma certa maneira fazem. mas não necessariamente. não acredito nas supostas armadilhas do quotidiano. nas coisas inevitáveis que ninguém consegue escapar. nos predeterminismos que dizem que cada relação vai passar pelas mesmas etapas. os mesmos ciclos. as mesmas dificuldades. a mesma decomposição.

são meras desculpas. é sempre mais fácil dizer que não depende de nós. que não deu. que é dos anos. do horóscopo. da fase da lua. das circunstâncias. do destino. da outra pessoa. da vida. tentar evitar essas armadilhas já seria trabalho a mais. investir esforço. lutar. não ficar desanimado. porque claro que os impulsos iniciais embotam. não podem sempre ter a mesma intensidade do que no início.

mas é onde a instituição do casal se torna fascinante. acho eu. uma personagem numa peça que li disse: quando és capaz de te disputar com alguém, o pau ao léu e uma escova de dentes na boca (quando estás tanto à vontade e que podes tomar tais liberdades), isto não tem preço. significa que se chegou a esta fase inaudita: tem-se a hipótese de estar completamente destapado emocionalmente a viver com alguém que nos conhece melhor do que os nossos pais. é uma aventura humana incrível! 

mas também um caminho longe de ser evidente e, às vezes, muito complicado. com crises uma depois da outra. a transformarem-se. dificilmente detetáveis. é preciso muita vontade para se ficar juntos. é também necessário ter saudades. deixar-se espaços que não sejam completamente compartilhados. é preciso aceitar que esse manual do usuário que criamos da outra pessoa possa mudar. que vai ser preciso adaptar-se. é sempre indispensável questionar as certezas que temos sobre o parceiro. 

ando desde há muito tempo fascinada pelos fins de histórias. por como o amor se usa. acaba. esvanece. porque a verdade é que, dentro dos três primeiros meses duma relação, consegue-se apontar para os problemas potenciais. a história do casal parece estar decidida nos inícios dele. e a capacidade para desejar o outro podia ser prevista com antecedência. em que direção vai o dueto? são os primeiros sinais que o sugerem. todos os casais têm uma predestinação. mas não é uma fatalidade que vem do exterior. que seja das pessoas ou das circunstâncias. é o casal mesmo que a fabrica.

diz-se que é um conjunto de duas nevroses. idênticas ou complementares. nunca escolhemos parceiros por acaso. a personalidade deles vai revelar e ativar partes de nós, boas e más, cuja existência nem suspeitávamos. raras são as pessoas que conseguem detetar estes elementos anunciadores de problemas. a maioria prefere não ver nada. não interpretar nada. fingir que fica indiscernível debaixo da capa do namoro. as diferenças de valores nunca se atenuam. e as pessoas não mudam.  

tudo isso mexe-se com o facto que temos a tendência para mentir sobre um número de coisas e com a nossa visão do desejo da outra pessoa. e quando as verdadeira feridas aparecem já no início, quando fingimos o que não somos, quando não determinamos os nossos limites e aceitamos tratamentos de merda, negamos quem somos. e chegamos a um ponto em que não se pode mudar nada sem partir tudo. 

no fundo, o amor só acaba quando nunca realmente existiu. quando acreditamos nas aparências dele enquanto não houve fundo nenhum. os conflitos são sempre difíceis a viver. sobretudo o primeiro. é preciso fazer o luto dos velhos valores e esperanças. e encontrar novos. é preciso reconstruir o casal. ou mais exatamente construi-lo de novo. a saber que um dos parceiros possa não estar interessado. que não querer seguir. as crises põem sempre a criatividade do casal à prova. ou seja a sua capacidade de se reinventar continuamente. de estar em evolução permanente. a dois, claro.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

clivagens

equilíbrios complexos

durante as minhas caminhadas na praia ou ando com os olhos fixados no horizonteis a fazer as minhas análises e a repor tudo em questão, ou olho para as cores dos biquínis das mulheres a tentar ver qual é a cor mais popular. mas a fazer esse segundo exercício, é difícil não notar as diferentes categorias. não de roupa de banho, mas de mulheres. há claramente grupos bem distintos.

1. as solteiras que viajam com amigas e aparecem na praia com maquilhagem total, a usar todas as joias que possuem, de penteados e roupa elaborados, a tirarem em permanência fotos uma a outra em posições exigentes e pouco naturais que sugerem que não devem ter melhor coisa para fazer na vida e apontam para um alto nível de desespero para encontrar alguém que as foda.

2. as raparigas que estão em relações novas e que felizmente já deixaram joias e penteados em casa porque assim é mais prático para vigiar que o tal namorado se contorcione em todas a posições imagináveis para tirar uma foto que possa ser na capa duma revista de dietas ou algo do género, e que requer pelo menos 1500 ensaios para acertar na posição/luz/direção do vento/humor do dia/não sei o quê (riscar a menção que não se aplica).

3. as mulheres refeitas (não tenho nada contra a cirurgia plástica, mas tudo contra a cirurgia plástica que mexe com as proporções naturais do corpo) que nem se sabe muito bem como estão vestidas nem por quem estão acompanhadas porque o tamanho dos lábios e dos seios tapa incluso o sol e não se consegue pensar em nada durante um tal eclipse.

estas três categorias são minoritárias e não devem representar mais de 10%. depois seguem dois grupos infelizmente maioritários).

4. as mulheres com filhos (pelo menos um), com barrigas flácidas ou como se continuassem grávidas mesmo que já não estejam, quilos a mais, tamanhos de soutien mal escolhidos e rabos preocupantes. uma imagem bem desoladora, sobretudo que muitas devem ter menos de 40 anos. ignoro como se pode deixar estar num tal status quo e escolher ser uma versão fisicamente medíocre de  si próprio.

5. as septuagenárias + com mamas beringelas e barrigas balões como se estivessem no décimo primeiro mês da gravidez, tudo a pendurar, bem vermelho, nu e exposto a ficarem em pé ou a andarem na praia. curioso como é que podem pensar que haja alguém, que não queira fugir ao ver tais tristezas...

e, finalmente, outro grupo minoritário:

6. as mulheres que cuidam do corpo e não estão interessadas em parecer baleias. independentemente da idade e dos filhos (que têm ou não têm). paradoxalmente, é o grupo que menos se nota porque é o mais neutral e não procura estar no centro das atenções.

a julgar pela população da praia, estamos num caminho entre aparências artificiais e descuido total. agora todos parecem ter mérito por serem quem são. tudo consegue justificar-se. tudo é atentado à integridade pessoal. parecer um hipopótamo deve ser fonte de orgulho. mas essas desculpas de merdas só servem para tranquilizarem consciências e mentalidades fracas. que, para mim, a única coisa potencialmente orgulhosa que se possa ver nisso é quando se deixa finalmente de merdas e se decide seguir um regime e fazer desporto.

domingo, 9 de julho de 2023

verão

vou parecer pouco objetiva. e tendenciosa. mas não posso fazer nada com isto. paciência. acho que todas as estações podiam ser apagadas. todas menos uma. o verão (e o inverno mas só na altura do natal, e a primavera, mas só na altura do florescimento das árvores, então não conta). o verão. a estação ao redor da qual as outras revolvem. a primavera anuncia os dias bons. o outono a nostalgia deles. o inverno a espera. essas três estações nunca podiam existir sozinhas. não faziam sentido. não se conseguia justificar os absurdos delas. o frio. o escuro. o cinzento. o incerto. não se podia contar com nada. as aberrações. as falsas promessas. as deceções. as indignações. as dúvidas. o desespero. 

atrapalhados no momento
o verão, enquanto a ele, não tem nada disso. é autossuficiente. completo. inteiro. cheio. a todos os níveis possíveis. não percebe nada das insuficiências. das carências. das lacunas. não conhece a impaciência. as saudades. as ansiedades. a falta. chega e preenche tudo da sua exuberância. o corpo esquece-se da roupa e expõe a sua pele nua aos elementos. deixa-se acariciar pelo vento. pela água. pelo sol. pela areia. pelo sal. apanha cor. torna-se na sua versão mais sensual. mais exibida. mais animal. faz um com a natureza abundante. a nossa alma vai de férias. compensa o tempo que não teve antes. ignora que dia da semana é. que hora é. mas goza cada dia. cada hora. cada minuto. mergulha no presente. um presente que nunca acaba. nem para. nem avança. parece suspenso entre os arbustos com flores. apoiado pelo azul. do mar por baixo. do céu por cima. sem hipótese que caia. que vacile. que acabe. tece uma tela de serenidade. de seguranças. de certidões.

para a maioria das pessoas é só uma ilusão de algo que nunca vão conseguir. os quilos perdidos para sempre. os amantes de duas semanas cuja memória vai tornar o cinzento do quotidiano menos terno. a suspensão no tempo que nos deixa abandonar uma péssima versão de nós. um trampolim para algo que nunca vai ser, mas preferimos fingir que vai. se ultrapassar esse grau de superficialidade, das aparências, descasca-se, cuidadosamente, a essência do verão. a pô-la num guardanapo para que não fique suja no nosso bolso quando formos descobrir, intrépidos, o mundo. tapado numa outra estação. às vezes invisível. sem brilho e leveza. mas não importa. porque temos o fulgor do verão em nós.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

?

há umas coisas sobre as quais nunca faço perguntas. quanto dinheiro as pessoas fazem. se têm filhos. porque é que ficam em relações de merda. curiosamente, pergunto sempre sobre a idade. o que supostamente não se faz. um crime de lesa-majestade. mas acho a idade neutral. um elemento que não reflete as nossas escolhas de vida. não ingere de nenhuma maneira na nossa intimidade. não revela mais do que queremos revelar (e às pessoas que acham que revela, só lhes posso responder que existem especialistas que tratam dos problemas da cabeça. é um número que não significa grande coisa). e lembro-me sempre melhor dos números do que dos nomes, das palavras ou das caras, então a idade é um parâmetro que sempre me deixa afixar melhor a pessoa na cabeça.

o dinheiro, os filhos e as relações já são coisas que considero muito mais íntimas. que quase todos cobiçam. ou ambicionam. pelo menos até a um certo ponto. mas nem todos conseguem. ou nem todos conseguem como queriam. ou no momento que queriam. o que torna os assuntos mais delicados. emocionalmente frágeis. com uma carga de vulnerabilidade que pode deitar abaixo. decompor. destabilizar. e nunca se sabe por onde é que fica o ponto de ignição. nem em que área nem a que nível. então acho mais prudente não abordar estes assuntos de todo. para não empurrar as pessoas para fora das zonas de conforto. 

regra geral, acho que as relações se fazem às velocidades ditadas pelas pessoas dos dois lados. contam o que querem. quando querem. e até ao ponto que querem. não dá para precipitar nada. nem para saltar etapas sem o consentimento do nosso interlocutor. nem forçar a compartilhar o que não está a ser dito. e quando as pessoas não contam, na maioria dos casos, o problema não são elas, mas nós. há coisas que não estamos a fazer bem para a pessoa se sentir completamente à vontade. ou avaliamos mal o lugar em que está a relação e ficamos à espera de coisas que não proporcionam à situação. são sempre alturas em que é preciso questionarmo-nos. perceber em que parte somos responsáveis pela situação. onde não correspondemos às expetativas. quais podem ser os medos e as dúvidas do outro lado. a única coisa que se pode fazer é ser paciente. não levar nada a peito. e ficar grato quando a pessoa acaba por se abrir. a confiança é algo que se ganha e que se merece. ou não.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

falta de companhias?

há uma grande diferença entre eu e as outras pessoas. em boa verdade, há muito mais do que uma. se calhar há mesmo mais diferenças do que semelhanças. ou pelo menos um número de coisas que faço de maneira completamente diferente. que penso de maneira completamente diferente. foi o drama da minha infância. o de saber que não estou a corresponder. que não vou corresponder. em adulta assumo. e adoro.

a melhor companhia possível

esta diferença surpreende-me cada vez que a vejo ou que penso nela. preciso passar tempo sozinha. dizia muito mais tempo do que a pessoa média. e dá-me um prazer imenso. fazer coisas sozinha. andar sozinha. ter áreas da vida que só me dizem respeito a mim. e onde sou eu que decido se as quero compartilhar. e quando. não sei se conseguia existir sem estes espaços. ou quão miserável seria a minha existência. há mais um elemento nesta equação: preciso poder viajar sozinha de vez em quando. é uma parte que quase ninguém percebe. conheço pessoas que não vão de férias há anos só porque não têm ninguém com quem possam viajar. ultrapassa-me completamente. estive a falar disto com o ian que comentou que as viagens sozinho eram sempre a melhor altura para fazer uma introspeção. nunca tinha pensado nisso assim. mas fez sentido. viagens solo são só para quem goste e precise autoavaliar-se. são poucas as pessoas que querem submeter-se a este exercício. e só elas percebem a necessidade. a urgência. o chamamento muda que não se pode ignorar

porque não é possível compreender-se quando se está acompanhado. ou pelo menos precisa-se estar com alguém com quem se está confortável calado. e durante muito tempo. autoavaliar significa anular tudo. e marcar um encontro consigo próprio. chegar a um ponto de claridade consigo. perceber-se. desenvolver uma imagem de si que seja confiante, coerente e estável. limitar as alturas em que se é apanhado desprevenido pelas suas reações. e emoções. ver-se de fora. e duma maneira completamente diferente. uma exploração do que está a acontecer dentro de nós. uma descoberta de traços de personalidade cuja existência ignorávamos. ou preferíamos não ver. ou não nós atrevíamos exprimir. é seguir um caminho até nós. um nós que muda com o tempo. estamos (ou pelo menos eu estou) numa evolução e numa aprendizagem permanentes. mas é também por isto que é sempre um prazer encontrá-lo de novo. perceber como, porquê e até que ponto mudou. uma viagem fascinante e que nunca para. e que só pode ser realmente explorada quando se a faz sozinho.

sábado, 27 de agosto de 2022

vibrações

só os italianos para fazer coisas dessas...

sempre que estou no sul e que vou a umas lojas de roupa, sobretudo no inverno, fico animada e entusiasmada. porque gosto de cores vivas e estou bem servida. preciso delas ainda mais quando o tempo está cinzento, para compensar e ficar mais animada. e com mais energia. se calhar parece completamente maluco e surrealista, mas algumas cores fazem-me sentir mais vibrante. estou consciente disso desde a minha infância e já sei o que usar e o que não para ter o melhor desempenho possível (sim, sim, ainda não estou a alucinar completamente, mas podia ser uma questão de tempo ;) ).

o problema é que nos países do norte, ou pelo menos nos que ficam cinzentos durante uma grande parte do ano, quase toda a roupa parece querer passar desapercebida e misturar-se com o ambiente. um enfoque que parece o oposto do meu. há pretos, cinzentos, azuis marinha, castanhos, beges,  verdes escuros. o desespero... preto detesto e nem é uma cor para mim. é uma falta de cor. os cinzentos a não ser que fossem muito mais claros, ficam-me muito mal. os azuis marinha são elegantes, mas nem sempre quero sentir-me tão sombria. evito os castanhos porque me fazem parecer com uma árvore e fundiam-se com o meu cabelo então acabava por parecer uma mancha sumida. quanto aos beges, não percebo a ideia de coisas neutras, nem o quero ser, e dão me um ar completamente doentio, a fundir-se com o pigmento amarelo da minha pele. o verde é outra vez a história das árvores, mesmo se há uns poucos matizes que acho elegantes. mas um verde nunca conseguiria fomentar-me.

ao entrar nas lojas no porto e em turim sentia o meu coração vibrar. estava em sintonia com o que via. com os vermelhos, os cor de rosa, os roxos, os azuis, todos muito intensos. munido assim, consegue-se aguentar melhor a falta de luz. e o frio. tem-se a impressão de ter ficado, nem que seja parcialmente no verão. e de já estar preparado para o verão a vir. no final das contas. o verão é a única coisa que me interessa. deve haver um erro na minha bagagem genética. ou algo assim. porque se contam em milhares os quilómetros que separam o lugar onde moro e o lugar onde mora o meu coração. a direção é para o sul :)